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sexta-feira, 30 de julho de 2010

O que uma tradução mal feita faz

por Leonardo Valverde


Yoga vs. Ioga

Sempre quando começo meus cursos de sânscrito, uma das primeiras questões que os alunos pedem para eu explicar é a palavra ioga. É ioga ou yoga - perguntam.

Geralmente perguntam em relação à pronúncia. E a explicação é simples: quando esta palavra for pronunciada em sua origem sânscrita, pronuncia-se com “o” fechado, pois no sânscrito não existe vogal aberta (”ó” ou “é”); e quanto a grafia, grafamos com “y” quando também é sânscrito, porque na transliteração oficial usamos esta letra latina - que foi adotada pelo alfabeto latino (do alfabeto grego) a partir da conquista da Grécia (I a.C) - para grafar a letra correspondente ao seu som (fonema) no alfabeto devanāgari, adotado pelo sânscrito.

O mesmo fenômeno que aconteceu com inúmeras palavras de outras origens que foram adotadas pela língua portuguesa, aconteceu com a palavra ioga. Por que não se escreve esta palavra com o “y” original da transliteração oficial se a temos no alfabeto latino?

Questão histórica. No Brasil, a letra “y” foi abolida do Formulário Ortográfico de 1943, e restaurada só no Acordo Ortográfico de 1990, que só entrou em vigor em 2009. Todas as palavras previamente grafadas com “i” no lugar de “y” continuaram como estavam.

E quando ela veio para o português como ioga, a pronúncia certa é com “o” aberto, pois há um fenômeno na língua conhecido como altura vocálica feita para diferenciar silabas tônicas de átonas ( i - o - ga ), e como é uma paroxítona (terminada em “a”), não se usa o acento gráfico. Portanto, grafias esdrúxulas como “yôga” estão erradas porque nem no sânscrito há acento gráfico, nem em português coloca-se acento em paroxítona com “a” final. Assim, tanto ioga (com “o” aberto), quanto yoga (com “o” fechado) estão corretas se falamos da primeira como português, e da segunda como sânscrito.

Mas o que me incomoda com a palavra yoga não é a pronúncia “errada”, e sim o significado comumente aceito.


Yoga vs. união

Minha proposta aqui é o de rever a tradução de uma palavra em sânscrito (yoga) que gerou uma idéia filosófica diferente da que deveria gerar. Não tenho pretensão que ela seja aceita ou trocada pela que é adotada hoje, mas só a de acrescentar um significado mais exato, e que transpareça sua idéia filosófica original.

O significado comumente dado à palavra yoga é união. Não é isso?

Yoga, para muitos, é unir.

Mas o que é união? Já pensaram nisso?

Num dos tratados mais antigos de etimologia (em sânscrito), o Nirukta, é dito que:

नामान्याख्यातजानीति

nāmānyākhyātajānīti (1.12)

Os nomes derivam dos verbos.

Então, levando esta frase em conta, mesmo para o português, vamos ao verbo.

União = unir. O dicionário Aurélio coloca como primeira acepção para o verbo unir:

“Tornar em um só; unificar.”

Já no dicionário Houaiss a primeira acepção para unir é:

“Aproximar, formando um todo.”

E parece-me que o significado para unir mais aceito é este mesmo:

“formar um todo, tornar um só.”

Mas ambos os dicionários também colocam como acepção o verbo juntar.

Se formos lá no latim, encontraremos:

Unir vem de unire.

Juntar vem de jungir, que vem de jungere.

O conhecido Julius Pokorny, e seu Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch, ou Dicionário Etimológico Indo-europeu, de 1959, definiu a diferença de significado dos dois verbos, e daí deduzimos que, originalmente, unir e juntar não significam a mesma coisa. Vejam como Pokorny classifica-os a partir do indo-europeu:

  1. i̯eu-, i̯eu̯ə-, i̯eu-g- > jungo, jungere, junxi, junctus - ‘jungir , juntar, atar junto’.
  2. oi-no-, oi-u̯o- > unio, unīre - ‘unir, ser um’.

E aqui entra minha explicação etimológico-filosófica para a palavra yoga:

Yoga vem da raiz yuj (dhātu), que significa jungir, atar, juntar, originalmente.

Se traduzimos yoga como unir, união, falamos de duas coisas que se tornam uma só, e, portanto, perdem sua individualidade, perdem o “princípio” que as faz serem quem são.

Se a traduzimos como jungir, juntar, junção, falamos de duas coisas que se aproximam sem perder sua individualidade, sem perder esse “princípio”.

OBS:

A primeira acepção em inglês do dicionário Monier Williams para a raiz yuj é:

“to yoke”.

E no Dhātupāṭhaḥ (listagem das raízes verbais do sânscrito) sua única acepção é:

yoge“.

Percebem a semelhança? A única mudança foi a da letra gutural “k” pela gutural “g”.


Leonardo Valverde é professor de Língua e Literatura Portuguesa, de Língua e Literatura Sânscrita e de Filosofia. Graduado em Letras. Atualmente, cursa Filosofia na UFF. Leciono no Centro Universitário da Cidade (UniverCidade), no Curso de Formação em Técnicas do Yoga (da ANYI), em cursos e escolas particulares.

www.leonardovalverde.com


2 comentários:

  1. "OQUE É UMA TRADUÇÃO MAL FEITA", ADOREI ESTA MATÉRIA REALMENTE MUITOS DOS PRATICANTES DE YOGA, ATÉ MESMO AQUELES QUE ESTÁ SE INICIANDO NESTE SADHANA, TRAZEM ESTE QUESTIONAMENTO...GOSTEI DA METERIA, PARABÉMS.
    NAMASTÊ!

    ResponderExcluir
  2. Muito legal o artigo. Gostaria de autorização para publicá-lo em outro blog!

    Harih Om!

    Paty

    ResponderExcluir

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